terça-feira, 21 de setembro de 2010

6 dias

     6 dias na terra de ventos quentes e úmidos. O lugar do mangue beat de Chico Cience, da Banda Eddie, do ritmo de Lenine, dos clipes de Mombojó, das poesias recitadas por Lirinha, de Suassuna, da areia branca da praia de Boa Viagem e das chuvas de verão que aliviam brevemente o calor. Casa de gente hospitaleira, espontânea, irriquieta, faladora e festeira. Onde moram meu pai, minha mãe, minha irmã e meus amigos de anos atrás. Ar com cheiro de maresia e sargaço que fica na pele como uma marca da certeza de que para essa terra seu filho sempre vai voltar.
     Vou deixar a secura da capital por 6 dias. E espero que quando eu volte o verde da grama esteja de fato verde, registrando a chegada das chuvas atrasadas de setembro. Que a chuva caia "de mansinho" como diria Gonzaga, sem assustar ninguém, para renovar as energias das árvores de troncos tortos e dos brasilienses de coração duro. Um alívio para os lábios, menos secos e mais convidativos ao beijo. 6 dias em Recife, 6 dias longe de Brasília. 6 dias de matar e sentir saudades.

domingo, 19 de setembro de 2010

Doces Lisbelas

Doces Lisbelas que somos nós, esperando que nossas vidas sejam roteiros perfeitos de comédias românticas e dramas americanos. Desde que a boneca perde a graça e os filmes e novelas passam a chamar mais atenção, viramos Lisbelas a espera da cena do beijo e do conflito superado pelo amor em um roteiro bem amarrado. Bonita inocência essa que deveria ser conservada salvando as devidas proporções. Sabendo que a declaração não precisa vir em inglês e cai muito bem no sotaque carregado de Leléu, ou de qualquer que seja o jeito pouco galante daquele que proferir a fala improvisada do seu próprio roteiro. Doces Lisbeslas que somos, ao nos darmos conta de que um filme é um filme e a realidade é bem diferente, mas não necessariamente pior, por vezes até melhor, à nossa própria maneira. Doces Lisbelas, doces, ingênuas e felizes Lisbelas.

 

Lisbela

Los Hermanos

Composição: Caetano Veloso e José Almino
 
Eu quero a sina de um artista de cinema
Eu quero a cena onde eu possa brilhar
Um brilho intenso, um desejo, eu quero um beijo
Um beijo imenso, onde eu possa me afogar
Eu quero ser o matador das cinco estrelas
Eu quero ser o Bruce Lee do Maranhão
A Patativa do Norte, eu quero a sorte
Eu quero a sorte de um chofer de caminhão
Pra me danar por essa estrada, mundo afora, ir embora
Sem sair do meu lugar
Pra me danar, por essa estrada, mundo afora, ir embora
Sem sair do meu lugar
Ser o primeiro, ser o rei, eu quero um sonho
Moça donzela, mulher, dama, ilusão
Na minha vida tudo vira brincadeira
A matinê verdadeira, domingo e televisão
Eu quero um beijo de cinema americano
Fechar os olhos fugir do perigo
Matar bandido, prender ladrão
A minha vida vai virar novela
Eu quero amor, eu quero amar
Eu quero o amor de Lisbela
Eu quero o mar e o sertão
Eu quero amor, eu quero amar
Eu quero o amor de Lisbela
Eu quero o mar e o sertão






Trilha (as melhores por mim)

"Você Não Me Ensinou a Te Esquecer" - Fernando Mendes - Interpretada por Caetano (tema de Lisbela e Leléu)
"O Amor é Filme" - Cordel do Fogo Encantado (tema final do filme)
"Espumas ao Vento" - Elza Soares (tema de Inaura e Frederico Evandro)
"Para o Diabo os Conselhos de Vocês" - Os Condenados
"A Dança das Borboletas" - Zé Ramalho e Sepultura (tema de Leléu)

domingo, 5 de setembro de 2010

O inesperado do ciclo repetitivo.


"Escovou os dentes e fez aquele coque improvisado no cabelo. Os restos de rímel nos cílios e a cabeça que latejava a cada passo que dava refletiam algo da noite anterior. O salto jogado no chão do quarto e o vestido pendurado na cadeira lhe traziam flashbacks alternados da silueta do moço. Silueta acentuada pelas luzes piscando cadenciadamente com a batida da música.  A pista de dança nunca esteve tão quente quanto naquela noite. As lembranças começaram a ficar mais claras conforme a água do café ia fervendo. Já era quase hora do almoço, mas e daí, ela só queria café. Não havia ninguém em casa naquele meio dia de domingo, e ela não precisaria explicar para ninguém o porquê do chegar ao amanhecer.   
O rosto que tomou conta da sua madrugada começava a ficar mais nítido. E as palavras que saiam daquela boca faziam cada vez mais sentido. As frases brotavam doces. Falava exatamente o que queria ouvir na noite de TPM que ela, por muita insistência das amigas, não passou em casa assistindo às piadas  do Zorra Total. Parecia que o rapaz havia analisado cada tópico do seu manual, possivelmente escrito em grego, o qual ninguém conseguira decifrar tão bem como ele. Lembrou então que, inconscientemente, ele sempre terminava por citar uma das suas atividades de rotina, desde a faculdade, do inglês,  até o horário em que chegava da academia nas terças-feiras. Eles dançaram sem insinuações, ou qualquer  “má intenção”, como ele deixara claro ao perceber o receio dela, resultado de experiências de baladas anteriores.
Ela nem queria sair de casa, nem tinha vontade de escovar os cabelos para ouvir estupidezes repetitivas as quais sabia de cor. Eram coleções de “posso te conhecer” e “Só vou embora se você me der um beijo” ao maior estilo dezessete anos que ela já não estava mais disposta a lidar, não naquela noite do seu ciclo. Assistiria a primeira comédia romântica que encontrasse nos sites de download, choraria a cada palavra bonita do mocinho, mas não teria que lidar com nenhuma cantada pouco criativa.  
Mas ela foi.  E naquela manhã desejava ter bebido apenas um drinque a menos para que não tivesse perdido nenhum detalhe, nem mesmo aqueles em que a realidade se misturava com o giro da pista de dança e das gargalhadas espontâneas que ele fazia brotar facilmente em seu rosto. Tomou um banho frio e deixou que as lembranças fossem se encaixando ao longo do dia, torcendo para que elas a levassem a um telefone, email ou página do facebook. Caso nada desse certo, a certeza da cidade pequena a fazia acreditar na possibilidade de encontrá-lo no próximo sábado, na mesma pista, talvez ao som da mesma música. Guardou as maquiagens espalhadas, tomou o remédio para as cólicas que viriam e sentou para procurar inutilmente uma boa programação na TV de domingo."

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Quanto falta?


- Mãe, mas quanto falta para acabar o colégio?
- Ah, filha. Muito tempo ainda.
- Depois da primeira série, o quê que vem?
- A segunda.
- E depois?
- A terceira.
-Se a professora disse que os números são infinitos, as séries da escola também são?
- Não, filha. Um dia elas acabam sim. Mas você vai sempre estar estudando e procurando saber sempre mais...
     Lembrou-se do dia em que decidira pular tantas series da escola quantas fossem necessárias para que só lhe restasse tempo para brincar. Lembrou que correu eufórica para tentar descobrir quantas seriam as series a serem puladas. E lembrou também da resposta vaga da mãe. Com as pilhas de fotos nas mãos sentiu de novo o gosto que era só se preocupar em qual rua iria correr. Se na de baixo, de barro, onde podia riscar as marcas de barra bandeira ou na de cima, asfaltada, onde os patins corriam mais fáceis.
     Se fosse pensar de novo em quantas series faltavam para ter tempo suficiente para brincar, concluiria que faltava pouco, em relação à distante pré-escola na qual se encontrava naquele flashback. Estava agora na faculdade, aquela de que sua mãe falara que vinha depois da escola, e que não conseguira entender muito bem como funcionava. Parecia tão distante que havia desistido de se preocupar. Mas não tinha, também, parado para pensar que o tempo passaria demais, e já não poderia mais brincar com as suas bonecas preferidas. Não pensou que o tempo seria tanto que elas estariam velhas, talvez nas mãos de outras crianças, talvez esquecidas pelas caixas de mudança.
     O problema não seria ela própria estar crescida, não, isso era o de menos. O problema seria uns coleguinhas de rua morando em outra cidade, outros com filhos no colo. Ela brincaria, se não tivesse que procurar um emprego, comprar um carro, financiar um apartamento e planejar seu casamento. A escola até chegaria ao fim um dia, ao contrario do que sua mãe não soubera definir. Um dia ela não precisaria mais dizer presente na sala de aula ou fazer a avaliação final. Mas nesse dia, mesmo sem escola pra bater o sinal as sete da manha, ela não poderia mais brincar, não como brincara no tempo em que ia à escola.